22/01/2014

1914: a fim da Belle Epoque

Michel Winock. Artigo tirado de Sin Permiso (aqui). Tradución para o castelhano de Lucas Antón e desde aí para o galego pelos gestores deste blogue. Michel Winock (1973) é professor universitário e especialista na história da República Francesa, assim como dos movimentos inteletuais, o nacionalismo, o fascismo e a extrema direita. É autor, entre muitas outras obras, de Siècle des intellectuels (Seuil, Prémio Médicis de ensaio, 1997), La Belle Epoque: la France de 1900 à 1914 (Perrin, 2002) e Clemenceu (Perrin, 2007). O negrito é de nosso.

 

Ao longo de 2014 e anos vindouros ir-se-á comemorando o centenário da maiúscula catástrofe inaugural que sumiu a Europa e boa parte do mundo nos infernos do século XX. No aniversário da Primeira Guerra Mundial, também Sin Permiso irá reproduzindo baixo o epígrafe de "1914" artigos e trabalhos que refletam o sentido das comemorações, as polémicas dos historiadores e o debate ideológico. (SP) [em À revolta entre a mocidade disponibilizamos também o tag 1914].

Bela, vaia por diante, não o foi pára todos. Mas esta idade de ouro da burguesía supôs um período de uma criatividade excecional. O grande historiador francês Michel Winock relata o que foram estes tempos, cuja nostalgia não deixará de cultivar a França de postguerra, em uma entrevista com Claude Weill para o semanário parisino Lhe Nouvel Observateur.    


Lhe Nouvel Observateur - Existiu a Belle Epoque? Ou é um mito, uma ilusão retrospectiva?


Michel Winock - Um mito, se querer, porque esta época não foi bela para todo mundo. A proteção social era débil, as desigualdades consideráveis, a esperança de vida ao nascer não superava os 50 anos... Bom número de índices sugerem-nos que esta "bela época" foi sobretudo a de uma burguesía triunfante cuja felicidade não era muito partilhada pelos mineiros de Carmaux ou os operários do têxtil de Roubaix. 

De quando data a expressão mesma?

Nasce depois da grande matança do 14-18. A Belle Epoque era, em primeiro lugar, a preguerra: nos anos de vida, por oposição aos anos de morte. As viúvas, os órfãos, os mutilados, os sobreviventes da catástrofe, em resumem, todos os franceses tinham alguma razão para pensar que tinha um "antes" do grande drama assassino. E depois, nos anos que seguem à paz de Versalles são anos difíceis, o franco afunda e com ele as poupanças, a inflação é galopante, o aparelho produtivo ficou devastado, as privações impõem-se... Então sim, foram formosos nos anos da preguerra! No entanto, para além desta explicação, mecânica em soma, a expressão justifica-se pelos factos, as criações, as invenções, uma verdadeira situação dos costumes que devemos ter em conta: está o mito, mas também uma quinzena de anos excecionais. Nisso é no que a lenda da Belle Epoque tem um fundo histórico.

Siguamos por um momento no mito: uma sociedade desigual, diz você...

França segue sendo então um país enormemente rural. Faz falta esperar ao censo de 1931 pára que a população urbana supere numericamente à população rural. E tanto! Chamava-se cidade a uma aglomeração a mais de 2.000 habitantes. A preponderancia do campesinado não deve enmascarar a sua natureza hierárquica: 150.000 proprietários possuem o 45% da superfície agrícola. O maior número constituem-no os pequenos proprietários, cuja situação é com frequência medíocre e precária, dependendo da conjuntura. A revolta dos viticultores do Midi em 1907 mostra a fragilidade das economias agrícolas. No mais baixo da escala, os parias: assalariados agrícolas, jornaleiros, serventes. Paralelamente, não deixou de crescer o número de operários industriais. São cerca de 5 milhões em 1914, ou seja, um terço da população ativa. Mas a sua concentração é ainda débil: só o 10% trabalha em fábricas a mais de 500 assalariados. A evolução vai, com tudo, no sentido desta concentração: Renault, que dava emprego a 110 pessoas em 1900 conta com 4.400 em 1914. Como média, o salário real anda à baixa a partir de 1905, o que explica em parte os movimentos sociais violentos a partir do ano seguinte. O desemprego segue sendo consubstancial à condição operária: desemprego endémico, estacional, conjuntural, e sem nenhuma garantia contra o mesmo! Sem dúvida, o conjunto do mundo operário saiu da miséria, mas segue carecendo de segurança, embora se votem algumas leis sociais no curso deste período: a lei de descanso dominical em 1907, a lei sobre retiro operário em 1910... Estamos ainda longe do Estado do Bem-estar!      

Em resumem, uma bonita época para os que têm...

O que efetivamente chama a atenção desta sociedade é o reinado não compartilhado da burguesia. Composta aproximadamente de um milhão de pessoas, não só possui as alavancas da produção económica senão que impõe também o seu modelo de civilização, monopoliza a cultura letrada, domina os meios de comunicação -os jornais-, fixa as regras da condição feminina e da vida familiar. A feição positiva é que constitui o que Veblen chamou a "classe ociosa". Ao dispor de capital, ao invés que os camponeses e operários, fomenta o desenvolvimento dos desportos, o auge do automóvel, as artes e as letras. Mas, na sua totalidade, insisto, a sociedade desta época é uma sociedade vivamente em contraste, hierarquizada, desigual, nada como para estar contente como não seja jogando a vista atrás ao que a precedeu: os franceses vivem sem dúvida melhor baixo M. [Armand] Fallières [presidente da República entre 1906 e 1913] que baixo Luis Felipe.     

É também a época dos grandes inventos: os que anunciam no novo século...

Sim, uma profusión triunfal de criações! A Exposição Universal de Paris, em 1900, parece dar o impulso de arranque aos inventos e desenvolvimentos técnicos. A primeira linha de metro atravessa a capital. A "fada Eletricidade" está chamada a transformar a indústria e a vida quotidiana. O cinema, que nasceu em 1895, se converte na grande arte popular, no que Louis Feuillade se impõe a Georges Méliès. Os automóveis surcan as estradas da França. Em seguida a aeronáutica apasiona às multidões; Blériot realiza a primeira travesía do Canal da Mancha em 1909 e Roland Garros, a do Mediterrâneo em 1913. 

E Paris, capital das artes e as letras: outro mito?

Claro está que não! Paris converte-se na Cidade-Luz, a que atrai a escritores e artistas do mundo inteiro: Picasso, Chagall, Stravinsky e os ballets russos... Em Paris é onde se livra a grande batalha entre a arte académica, que ocupa ainda as instituições, e as vanguardas: o fauvismo, o cubismo, o futurismo...

Os cafés de Montparnasse são os quartéis gerais de artistas e escritores de todas as nacionalidades. A vida teatral é intensa. Nos bulevares aplaudem-se a posta em cena de [André] Antoine, as peças de Claudel, [Jacques] Copeau cria o Vieux Colombier. Pensemos assim mesmo no grande florecimiento musical que conhece a França, com Debussy, Satie, Ravel... No Collége de France, há codazos por escutar a Bergson. A literatura vive um dos seus momentos mais fastuosos: fundação da Nouvelle Revue Française, em torno de André Gide, criação do Prêmio Goncourt, rivalidad entre Maurice Barrès e Anatole France, resplendores de Charles Péguy e Leon Bloy, aparecimento de Guillaume Apollinaire, descoberta de Alain-Fournier e de Marcel Proust... Pode-se falar de uma luz cegadora da Belle Epoque.

No terreno político é também uma época de debates intensos. A Belle Epoque supõe ao mesmo tempo o apogeu da burguesía e a poderosa ascensão do socialismo?

De facto, o movimento socialista conhece um auge considerável. No ano 1905 foi testemunha da criação da SFIO [Secção Francesa da Internacional Operária, o socialismo francês], sobre a base das teses guesdistas [de Jules Guesde] que, em nome da luta de classes, proibiam a um socialista participar em um governo burguês. Mas Jaurès, aparentemente derrotado por Guesde, não deixa por isso de ser menos a grande figura de um partido socialista ao que convence da "evolução revolucionária": conservar a revolução na cabeça, mas aceitar e promover todas as reformas sociais, que, longe de debilitar o dinamismo revolucionário, não podem mais que aguilhoá-lo. [Jaurès questiona a teoria dos dois mundos da SPD, nota À revolta]  

No entanto, o socialismo de partido deve contar com o seu rival, o sindicalismo revolucionário da CGT, que é outra forma de socialismo, mas separada de práticas partidárias, parlamentares e eleitorais. Este sindicalismo de ação direta, cujos princípios se reafirmam no congresso de Amiens de 1906, contempla a revolução por médio da greve geral. A separação entre partido e sindicato impede a formação de uma socialdemocracia à alemã. Jaurès não desfalecerá na sua busca de uma aliança entre os dois movimentos; consegue-o parcialmente na grande campanha contra a lei do serviço militar de três anos, que é também uma campanha contra a guerra. Nas eleições de 1914, a SFIO consegue uma centena de deputados eleitos para a Câmara, e é uma força com a qual têm de contar as demais formações de esquerda, começando pelos radicais.

No entanto, a paixão nacionalista está viva


É incontestável que o nacionalismo não é uma paixão extinguida a começos do século XX. Mas o nacionalismo exacerbado xenófobo e antisemita do affaire Dreyfus perdeu muito do seu vigor. Desde depois, a Ação Francesa mantém-se nesta filiação, mas na direita afirma-se outra forma de nacionalismo, encarnada por uma nova geração intelectual que ilustra o inquérito aparecido em 1912 baixo o pseudónimo de Agathon e titulada "Os jovens de hoje em dia". Dito inquérito nada tem de cientista, mas a corroboran em parte outros inquéritos do mesmo género na imprensa. Nelas se expressa um nacionalismo belicista, o gosto pelo desporto, pela disciplina e o comando, uma volta ao catolicismo... Há periplos individuais que completam estes depoimentos, sobretudo os dos antigos dreyfusards [Charles] Péguy e [Ernest] Psichari, voltados à fé cristã e que fazem apología da guerra.

Mais que nacionalismo, França está henchida de patriotismo. A batalha em torno da  lei de três anos de serviço militar não deve ocultar a de um Jaurés que prega contra os seus adversários não o antipatriotismo, como certos anarquistas, senão uma reforma militar destinada a criar um exército de cidadãos, organizado em função da defensiva [na tradição de Robespierre, N. À revolta]. Em L´Armée Nouvelle [O novo exército], expõe esta ideia e faz apología, contra Marx, da ideia de pátria, incluindo os proletários. Coincidem a unificação do território graças aos transportes modernos, a escola obrigatória, o serviço militar, os grandes diários e a literatura popular para formar uma consciência nacional. Julien Benda escreverá que nunca se sentiram os franceses pertencer a uma mesma nação como em 1914.   

Por conseguinte, é o Viva Déroulède e "abaixo os boches"! Não está obsessionada a França de então com a questão de Alsacia-Lorena?

É mais complexo. Pronto, a lembrança de Alsacia-Lorena, certamente, segue estando viva. Em janeiro de 1913, [Gabrielle] Réjane põe em cena no seu teatro uma peça mediocre de Gaston Leroux, Alsace, que obtém um grande sucesso. Os factos de Saverne, em 1913, quando um oficial alemão a empreende com recrutas alsacianos e insulta à bandeira francesa, suscitam uma grande onda de emoção. E no entanto, em um clima electrizado pela crise franco-alemãs de 1905 (Tánger) e de 1911 (Agadir), a vontade de uma guerra de revanche contra a Alemanha vitoriosa de 1871 não é perceptível mais que em grau muito débil. De facto, ninguém ou quase ninguém crê na guerra. A morte, a princípios de 1914, de Paul Déroulède, profeta da revanche, é como um símbolo. Quando acontece o atentado de Sarajevo, os diários em absoluto pronostican um conflito armado: consagram as suas portadas do mês de julho ao processo da senhora Caillaux, assassina do diretor de Lhe Figaro.  

Desde faz quarenta anos, França dedica-se a escutar às sirenas da paz: superou sucessivas crises internacionais, primeiro com os ingleses, depois com os alemães; nem sequer as guerras balcánicas, em 1913, fizeram estourar Europa. Unicamente o ultimato da Áustria-Hungria a Sérvia, o 23 de julho de 1914, é o que, de um só golpe, faz soar as alarmes. Cinco dias mais tarde, Áustria-Hungria declara a guerra a Sérvia. Desencadeia-se a engrenagem infernal das alianças. A Belle Epoque termina-se.

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