30/10/2013

Desobedecer a universidade-empresa, entrevista

Tullio Gregory. À revolta entre a mocidade, blogue coletivo de formaçom e informaçom desde umha ótica de esquerdas, traduz este artigo desde Sin Permiso (aqui). Boa leitura. Tullio Gregory (1929) estudou Filosofia na Universidade La Sapienza de Roma, em que foi, a partir de 1962, professor de História da Filosofia Medieval e desde 1967, de História da Filosofia, dirigindo o departamento de Investigações Histórico-Filosóficas e Pedagógicas. Destacam os seus estudos sobre as transições do pensamento filosófico, científico e teológico entre o Medievo e o século XVII. Roberto Ciccarelli é jornalista do diário italiano Il Manifesto.






 




Embora centrada exclusivamente no estado da educação superior italiana, esta entrevista com o filósofo Tullio Gregory de Roberto Ciccarelli, em que critica com dureza os modos avaliação universitária no seu país, tem ecos e ensinos para todos aqueles que se inquietam pela aniquiladora mercantilização de uma universidade em que, segundo o mesmo Gregory, «se impôs uma linguagem bancária».
  
Vinte e cinco anos após a primeira avaliação da investigação impulsionada em 1986 por Margaret Thatcher na Inglaterra, também Itália pôs em marcha em 2011 a sua primeira experiência com a Agência Nacional de Avaliação do Sistema Universitário e da Investigação (em italiano, Agenzia Nazionale dei Valutazione do sistema Universitário e della Ricerca, ANVUR). Hoje, um sistema mau concebido, ao que primeiro o centroesquerda em 2007 e depois a posterior reforma Gelmini [1] outorgaram grande poder, mantém como refém a uma universidade desfalecida.

As «classificações» que deviam ter instituído uma gradação «objetiva» entre universidades «virtuosas» e «defeituosas» se revelaram bem pouco «objetivas» (se veja Il Manifesto do 26 de julho); clausura-a do processo de habilitações nacionais para estabelecer o "mérito" dos pesquisadores pospôs-se de novo ao 30 de novembro e demitiram 74 pesquisadores estrangeiros de 53 comissões sobre 184. O motor da avaliação tem-se embalado, enquanto na França o governo socialista anunciou em janeiro clausura-a do AERES (Agence d´Évaluation da Recherche et de l´Enseignement Supérieur), a agência que desde 2006 leva ocupando da avaliação das universidades e da investigação. «Um delírio burocrático» é como a definiu a Academia das Ciências. Na Itália, em mudança, segue-se por um caminho que não reportará benefícios e corre o risco de transformar a natureza mesma da investigação submetida a uma avaliação abstrata, imperativa e empresarial.

Assim o acha Tullio Gregory, um dos filósofos mais conhecidos da Itália, académico dos Lincei, [2] que vislumbra assim mesmo outro risco no modelo ANVUR: «A polémica em curso sobre a avaliação da investigação nas universidades italianas e por tanto sobre as classificações finais das diversas sedes - afirma - pode converter-se um espaço de exercícios retóricos ou de competições de campanário se não se vêem os limites das avaliações e se reajusta por tanto a sua importância».

Quais são os limites deste modelo de avaliação?

A sua abstração. A ANVUR pretende avaliar "entes" - com toda a vaciedade de um termo «metafísico» -, prescindindo também das infraestruturas (laboratórios, bibliotecas, e horários de abertura, incremento dos instrumentos científicos e dos patrimónios bibliográficos) e dos resultados efetivos da investigação dos indivíduos: o pesquisador fica reduzido a um «posto docente» (isto é, a uma lacuna de um sistema informático), o resultado do seu trabalho é um «produto» cujo valor se mede pelo sucesso no mercado. Como escreveu Sabino Cassese, aplicando «técnicas de engenharia» e métodos burocrático-administrativos, a ANVUR «matou a avaliação» e talvez «se matou a si mesma».

É possível imaginar uma alternativa a este sistema?

Faz falta redescubrir a investigação ? e o ensino ? no seu concreción individual, que escapa aos critérios da ANVUR. Pessoalmente, se tivesse que aconselhar a um estudante que opções cursar, prescindiría do tudo das avaliações da ANVUR. Se o jovem quisesse, por exemplo, estudar história da Filosofia Medieval, aconselhar-lhe-ia não só a Universidade do Salento, em Lecce, à que se avalia bem, senão também a Universidade de Bari, onde há também uma magnífica escola de Filologia Clássica. Neste caso, não teria em consideração nenhuma a classificação por parte da ANVUR desta sede, das últimas entre as grandes. Não consideraria em mudança  estudar Filologia Clássica, por mais que a ANVUR as avalie positivamente, nessas universidades, nas que se admite que se apresente também ao exame de literatura grega antiga quem não tem conhecimento da língua. E poderia dar muitos outros exemplos. 

Na sua opinião, é possível avaliar com critérios objetivos as opções escolhidas pelos estudantes ou os pesquisadores?

Não é possível avaliar universidades, faculdades, departamentos como se fossem realidades homogéneas no seu interior. A situação é extremamente fragmentaria e o único ponto válido de referência constituem-no os professores individualmente, o seu ensino, as investigações que promovem. Ainda que não se deva infravalorar o facto de que hoje o panorama universitário está mutando com a mudança dos ensinantes por translado ou aposentação. E isto incide muito sobre os critérios da eleição

A ANVUR é um dos pilares da reforma Gelmini. No atual estado de aplicação da reforma, como julga o futuro da Universidade? 

Acho que é um das feições que contribuiu ao declive da universidade italiana como local primordial da alta cultura e da investigação especializada. Tudo começou quando a universidade se viu acometida, sem reagir, por uma série de reformas inconexas impulsionadas por uma classe política, diferente segundo os anos, mas conforme na sua indiferença pela cultura e a investigação. Multiplicaram-se as matérias de ensino sem nenhuma motivação científica, criando um precariado inútil. Suprimiram-se as oposições para disciplinas individuais, negando por tanto a especialização que deveria caracterizar ao ensino universitário. Os exames reduzem-se à contagem dos chamados «créditos», exemplificação de um mundo no que se impôs uma linguagem empresarial e bancário. Ao fazer assim se quer reconduzir o labor de um estudante a determinadas horas de estudo em relacionamento com um número predefinido de páginas que estudar para o exame. As dezenas de textos, os milhares de páginas que se pediam antanho são hoje frutos proibidos, como a discussão na língua respetiva das teses em língua e literatura estrangeiras.  

Há alguma maneira de resistir à transformação empresarial das universidades? 

Se alguma universidade quisesse voltar a ser local de ensino e de formação superior, deveria recuperar a sua própria autonomia e a sua própria dignidade reduzindo radicalmente o número de matérias de ensino, ignorando de facto as disposições ministeriais. Assim me parece que se comportou Direito na Sapienza de Roma, propondo cursos do mais alto nível de especialização, selecionando a professores e estudantes de acordo com esta perspetiva.


Notas:

[1] A reforma Gelmini levada a cabo por Mariastella Gelmini (1973), ministra do governo Berlusconi entre 2008 e 2011, e titular da carteira cujo nome é, de certo, de "Instrução, Universidades e Investigação" responsável pelo Decreto Lei 180/2008 sobre "Disposições urgentes relativas ao direito ao estudo, a valoração do mérito e a qualidade do sistema universitário e da investigação". 

[2] A Accademia Nazionale dei Lincei, fundada em 1603, é a máxima instituição cultural italiana e a academia científica mais antiga do mundo.   

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