08/03/2011

Tariq Ali: “Assistimos à segunda vaga histórica do despertar árabe”

Tariq Ali. Tirado de aqui.

"A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo". Entrevista de Tariq Ali, feita por Christophe Ventura.
 
“Se os dirigentes do Bahrein forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita” - Manifestação em Manama, Bahrein, 4 de Março de 2011, foto de Mazen Mahdi/Epa/Lusa
“Se os dirigentes do Bahrein forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita” - Manifestação em Manama, Bahrein, 4 de Março de 2011, foto de Mazen Mahdi/Epa/Lusa
 
Mémoires des Luttes (MDL - "Memórias das Lutas"): Que se passa actualmente no mundo árabe?

Tariq Ali (TA): Acho que estamos a assistir à segunda vaga histórica do despertar árabe. A recusa dos povos a beijar, durante mais tempo, a mão que segura o pau que os puniu durante décadas abriu um novo capítulo na história da nação árabe. A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo. Os que faziam a promoção desta ideia são os que estão mais descontentes. Penso em Israel e nos seus lóbis na Europa e nos Estados Unidos – o que eu chamo a Euro-América -, na indústria militar que vendia tudo o que podia àqueles regimes, mas igualmente nos presionados dirigentes da Arábia Saudita que se interrogam hoje sobre se a epidemia democrática vai propagar-se até ao seu reino tirânico.

Até agora, estes últimos deram refúgio a numerosos déspotas, mas, quando o momento vier, onde vai a família real saudita encontrar refúgio? Os dirigentes sauditas devem saber que os seus protectores ocidentais, antigos ou novos, os deitarão fora sem cerimónia como meias velhas e proclamarão que sempre foram favoráveis à democracia.

Se houvesse comparação a fazer com a história europeia, seria com 1848, quando os levantamentos revolucionários tomaram forma continental, poupando apenas a Grã-Bretanha e a Espanha*.

Como os Europeus de 1848, os povos árabes lutam contra a dominação estrangeira: 82% dos egípcios têm uma “imagem negativa dos Estados Unidos”, recordava recentemente uma sondagem. Não julgaram útil pôr a questão a respeito dos europeus... Eles lutam contra a violação dos seus direitos democráticos e contra uma elite cega pela sua própria ilegitimidade. Eles querem mais justiça económica.

MDL: Quais são as características desta “segunda vaga do despertar árabe”?

TA: A situação é diferente da que conhecemos na primeira vaga do nacionalismo árabe. Essa foi essencialmente anti-imperialista e tinha como principal objectivo libertar a região dos vestígios do império britânico.

As actuais revoluções árabes, desencadeadas pela crise económica, mobilizaram a vontade, a criatividade e poder de enormes movimentos de massas. No entanto, nem todos os aspectos da vida humana não foram postos em questão. Os direitos sociais, políticos e religiosos são alvo de fortes polémicas na Tunísia, mas não noutros lugares, pelo menos para já. Até agora, nenhum novo partido se formou, o que leva a pensar que as futuras batalhas eleitorais oporão o liberalismo e o conservadorismo árabe, neste último caso sob a forma das Irmandades muçulmanas, versão local da democracia cristã europeia.

Estes últimos tomarão como modelos os seus correlegionários actualmente no poder na Turquia e na Indonésia e confortavelmente instalados no regaço dos Estados Unidos. Os dirigentes da Confraria propõem uma transição ultra-ordenada se Washington os apoiar, o que poderá acontecer. A diferença com a Turquia reside no facto que foram movimentos de massas que derrubaram ou ameaçam os déspotas do mundo árabe. O futuro poderá ainda reservar-nos surpresas se os regimes de transição ou de sucessão provocarem decepções na frente social.

MDL: Como vão reagir os Estados Unidos?

TA: A hegemonia dos Estados Unidos na região foi beliscada, mas não destruída. Ela retornará, mas não da mesma forma. Os regimes pós-despóticos vão ser mais independentes, mesmo que, no Egipto ou na Tunísia, o exército esteja sempre presente para garantir que nada vai longe de mais. O novo grande problema para a Euro-América tem por nome Bahrein. Se os dirigentes deste pequeno reino – que dependem de um exército dominado por oficiais e soldados reformados do exército paquistanês – forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita. Pode Washington dar-se ao luxo de ficar de braços cruzados perante uma tal perspectiva? Ou vão os Estados Unidos implicar as suas forças armadas na manutenção no poder dos cleptocratas wahabitas?

MDL: Como analisa a situação na Líbia?

TA: As raízes dos levantamentos na Líbia não são diferentes dos que explicam os acontecimentos na Tunísia ou no Egipto.

Mouamar Kadhafi dirigiu o país com mão de ferro. Se por vezes recorreu a uma retórica anti-imperialista num passado longínquo, ele colaborou directamente, nas últimas décadas, com a Euro-América. O ideólogo de Tony Blair, Anthony Giddens, fez elogios ditirâmbicos ao Guia. O estilo de vida deste último e as suas políticas excêntricas tornaram-no inapto para modernizar o seu país. Apesar dos quarenta anos que passou no poder, os líbios têm um nível de educação muito pior que os tunisinos e o sistema de saúde do país é muito deficiente.

O balanço de Kadhafi é um Estado de partido único degenerado, as prisões e a utilização da tortura. E tudo isto para manter a sua família no poder. A sua decisão de recorrer ao exército e à aviação para reprimir o seu próprio povo levou à libertação de Benghazi e provocou uma dissidência na instituição militar. Os soldados que recusaram abrir fogo sobre o povo foram executados pelos esquadrões da morte do ditador, como pudemos ver na Al-Jazeera. Fazer querer que este regime é progressista é uma vergonha. Com um país dilacerado e um exército dividido, os dias de Kadhafi estão contados.

Notas do blogger
* Eric Hobsbawm assinala como esta "primavera dos povos" se tornou aginha um fracasso, embora num começo tudo indicava para um terrível sucesso das revoltas de 1848. Também as revoltas das Áfricas e do Oriente Próximo semelha que podam rematar com paulatinas "restauraçons", onde algo se mudará para que rem mude realmente. HOBSBAWM, Eric (1975): The Age of Capital 1848-1875, Crítica, Barcelona, 2007, pp. 21-38.

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