08/11/2010

Depois da Utopia. Entrevista

Antoni Domènech e Daniel Raventós. A entrevista original em castelhano pode consultar-se aqui. Antoni Domènech e Daniel Raventós, colaboradores habituais em diferentes projectos académicos, editoriais e políticos, são duas vozes chave na crítica das ciências sociais contemporâneas. Raventós -professor titular na Faculdade de Economia da Universidade de Barcelona, presidente da Rede Renda Básica e membro do Conselho Assessor de ATTAC- é conhecido particularmente por seus trabalhos em torno de renda cidadã universal. Domènech, catedrático de Filosofia das Ciências Sociais na Universidade de Barcelona, é um dos mais importantes filósofos políticos de nosso país. Ambos são fundadores da revista Sin Permiso. O quadro que ilustra esta entrevista é de Edvard Munch.



A revista cuatrimestral do Círculo de Belas Artes de Madri, Minerva, entrevistou em maio a Antoni Domènech e Daniel Raventós. Reproduzimos esta entrevista, realizada por Esther Ramón e cuja redacção final fez Carolina do Olmo, que se publicou no número 15 de Minerva correspondente ao último cuatrimestre de 2010.

Utopia e catástrofe

Domènech: A história das utopias modernas mostra que estas costumam aparecer em momentos catastróficos, de derrota. Sem ir mais longe, a Utopia de Tomás Moro é em boa medida uma reacção ao desastre da conquista de América: Rafael Hytlodeo é um português que lhe conta a Moro o felizes que viviam os índios até a chegada dos invasores. Ademais, o primeiro livro da Utopia de Moro analisa com muito detalhe a catástrofe que supôs a destruição dos bens comuns na Inglaterra de começos do século XVI. Do mesmo modo, o chamado "socialismo utópico" é uma reacção à contrarrevolución, à catástrofe política que supôs para os movimentos populares a derrota de Robespierre. Precisamente, a eclosión do socialismo não utópico, o marxismo e o anarquismo, se produz quando o movimento operário retoma a iniciativa. Em ocasiões, as utopias podem propor reflexões interessantes, críticas e lúcidas, como é o caso de William Morris ou Diderot, mas com freqüência resultam muito reaccionarias. Por suposto, não há nada mais despótico que a República de Platón. Mas também, apesar do que com freqüência se diz, Tomás Moro era profundamente conservador. Em Utopia tinha escravos públicos, muitos deles emigrantes pobres que se esclavizan voluntariamente, um patrioterismo feroz... Em geral, a utopia associa-se a uma derrota mau aceitada, a uma fugida da realidade que tem um componente autoritario. As utopias costumam estar mais preocupadas pela harmonia e a felicidade que pela liberdade, ao invés que os movimentos revolucionários reais.

Ultraliberalismo e utopia

Raventós: Se pervive uma utopia particularmente poderosa, essa é a liberal. De todo o programa neoliberal que se pôs em marcha faz uns trinta anos não se cumpriu praticamente nada; por isso é, em sentido estrito, uma utopia reaccionaria, que conseguiu convencer num momento determinado a boa parte da sociedade graças a um aparelho de propaganda muito eficaz. Quanta esquerda não se deixou seduzir pelas grandes proclamas neoliberales? Por exemplo, nunca se levou a cabo nenhuma reconversión industrial tão brutal como a que puseram em marcha os governos de Felipe González.

É importante não subestimar a impressionante eloquência e capacidade de militancia de alguns ultraliberais para ressucitar uma teoria que após a Segunda Guerra Mundial tinha ficado arrinconada pelo keynesianismo. John Kenneth Galbraith na sua História da economia, que escreve no momento em que Reagan ganha suas primeiras eleições, mostra-se perplexo da volta do que ele chama a "economia neoclásica". Mas também é verdade que este processo implicou uma estratégia deliberada de manipulação em que desempenharam um papel protagonista os meios de comunicação. A destruição dos sindicatos e o tecido social em benefício da mercantilización generalizada requer uma intervenção administrativa a enorme escala que, quando a resistência é muito forte, se converte numa liberalização manu militari, como sucedeu em Chile e em Argentina. Precisamente faz pouco acabam de deter em Argentina por genocida a Martínez de la Hoz, o grande ministro ultraliberal de economia de Videla, um autêntico "garoto de Chicago". Também existem processos de influência directa, pelo dizer assim. A quantidade de dinheiro que se move no mercadeo político de Washington ou Bruxelas é impressionante. O Tribunal Constitucional norte-americano permitiu recentemente que as empresas desse país dêem todo o dinheiro que lhes pete aos candidatos eleitorais, uma decisão que muitos, desde o presidente Obama a Noam Chomsky, consideraram um golpe mortal à democracia.

Domènech: O ultraliberalismo pode considerar-se uma utopia no sentido de que constitui uma autêntica fugida da realidade. A ideia de que a expansão dos mercados financeiros supôs um retrocesso do Estado é singelamente imaginaria. A estas alturas deveria ser óbvio que a crise económica actual é em boa medida o resultado de uma política activa de inflação de activos financeiros e inmobiliarios por parte da reserva federal estadounidense e os bancos centrais de muitos países. E, depois do estourido da bolha, a intervenção foi de novo em massa: a injecção de dinheiro do governo de Estados Unidos na economia real rodada os quatro biliões de dólares, quase quatro vezes o produto interno bruto de Espanha e, em dólares constantes, o mesmo custo da intervenção estadounidense na Segunda Guerra Mundial.

A desregulación dos mercados é um mau chiste. O que temos são uns mercados profundamente intervindos em favor dos interesses de rentistas financeiros e inmobiliarios em guerra pugnaz com o movimento operário organizado e, de um modo mais descuidado, com o capital productivo real. A globalização é a vingança dos rentistas, que tinham sido contidos pelas políticas reformistas keynesianas da coalizão antifascista da Segunda Guerra Mundial. O problema é que as elites que nos governam se creram suas próprias mentiras a tal ponto que deixaram de entender como funciona o capitalismo real. As quatro semanas agónicas que viveu Grécia até que interveio o Banco Central Europeu foram uma tolémia. Qualquer pessoa que tivesse umas mínimas noções de macroeconomía sabia que a quebra de Grécia era inadmissível e que a maneira de resgatar sua economia passava por comprar dívida pública grega. Demorou-se tanto em tomar esta decisão não só por interesses eleitorais regionais da senhora Merkel, senão porque a Comissão Européia e os ministros de finanças europeus não acabam de entender como funciona o mundo. É para lembrar-se do rei Lear: «Apenas dos nossos tempos é que os cegos guiem aos loucos».

A utopização sobrevida

Domènech: Nas últimas décadas assistimos a um deslocamento para a direita do centro de gravidade do sentido comum político. No final dos anos sessenta, quando estava a estudar em Alemanha, presenciei um debate na televisão pública entre Kurt Kiesinger e Willy Brandt. Em determinado momento, Brandt acusou a Kiesinger de querer autorizar as televisões privadas. Este último pôs o grito no céu: a democracia cristã jamais permitiria a existência de televisões privadas, disse, isso seria a morte da democracia da República Federal... Imaginai-vos o que passaria se alguém dissesse hoje que as televisões privadas são problemáticas, como pouco acusar-se-lhe-ia de autoritarismo terminal. Em aquilo anos existia um consenso em torno de uns pontos mínimos que hoje se rompeu. Na televisão pública de Cataluña, onde há um governo de coalizão de esquerdas, os tertulianos convidados oscilam entre a extrema direita e o centro, o centro esquerda está singelamente excluído. As reformas mais elementares e factíveis, realizadas mil vezes entre 1937 e 1975, agora pareceriam utópicas, irrealizáveis ou perigosamente totalitarias. Isto destruiu ideológicamente à esquerda. A taxa de sindicalización em todo mundo baixou a menos da metade em trinta anos. O movimento popular foi desvertebrado, desorganizado e isso explica que tenhamos uma esquerda que, por um lado, parece utópica (porque qualquer coisa parece utópica) e, por outro, reage enquistando-se sectariamente. Como explicou Rosa Luxemburgo, sem reforma não há revolução. E vice-versa: para fazer boa reforma precisas ameaçar com algo. Precisamos recuperar esse tipo de dialéctica.

Raventós: Não se trata só de questões ideológicas. As políticas públicas relacionadas com a redistribución das rendas consideradas normais faz mal três décadas são hoje impensáveis Durante os Trinta Gloriosos [1945-1973], os tipos impositivos para os mais ricos chegaram a estar no 91% em Estados Unidos. As rendas superiores aos duzentos mil dólares tributaban -baixo um presidente de direitas como Eisenhower- ao 93 %. E isso ocorria numa época em que não existiam os instrumentos de evasão fiscal actuais. Estamos a falar da época anterior à ruptura de Nixon com Breton Woods em 1971, que desancorou o dólar, levantou o controle dos movimentos de capitais e permitiu a volta ao capitalismo anterior à Segunda Guerra Mundial. Hoje, a efeitos práticos, com os correspondentes e abundantes descontos, a tributação das grandes fortunas vem a rondar 20% e, se são benefícios do capital, o 15%. Actualmente, no Reino de Espanha, as SICAV, cómodo e legalíssimo refúgio das grandes fortunas, tributan ao 1%. O regulamento que permite semelhante barbaridade aprovou-se em Espanha com todos os votos parlamentares menos os de Esquerda Unida. Assim que não é apenas que se hoje alguém propusesse recuperar as propostas da direita norte-americana dos anos sessenta seria tachado de demente bolchevique, senão que também se oculta sistematicamente esta realidade. É impressionante o velo de silêncio que cobriu este assunto.

Domènech: Há que fazer questão de que a globalização não é um fenómeno novo relacionado com o multiculturalismo e Internet, senão o sistema social dominante até a Segunda Guerra Mundial. A reforma do capitalismo de Roosevelt e a esquerda burguesa consistiu numa desmundialización da economia que introduziu controles nos movimentos de capital, esse é o núcleo do keynesianismo. Só assim foi possível a política social-democrata da década dos cinquenta e sessenta, com uns sindicatos fortes -capazes de obrigar à patronal a sentar-se a negociar porque não podia mover os capitais a seu desejo- e constituições como a alemã ou a italiana, que brindaram aos trabalhadores direitos que tivessem parecido incríveis nos anos vinte. Quando desapareceu a possibilidade de controlar os movimentos do capital criou-se o que Keynes chamava um "parlamento virtual" onde os mercados financeiros votam e seu voto conta mais que o dos parlamentos políticos. Nesse contexto, que é o nosso, o populismo de direitas pode arrasar, como está a ocorrer em Estados Unidos com o movimento dos Tea Parties. O auge desta nova extrema direita populista explica-se pela impotencia de Obama em frente aos mercados financeiros. E não há que esquecer que os assessores económicos de Obama são a equipa de falcons que levou à destruição a Rússia de Yeltsin.

Não obstante, há fenómenos que nos permitem não ser completamente pessimistas. Por exemplo, depois da quebra da economia islandesa, o Fundo Monetário Internacional e a União Européia puseram umas condições de resgate muito duras que o Parlamento de Islandia aceitou. Mas então teve uma grande manifestação de protesto exigindo um referendo. Convocou-se o referendo e as medidas foram recusadas por um 94% dos votantes. A sumisión ao FMI não é a única opção. Por exemplo, como propôs Randall Wray, um país poderia dizer a seus deudores que devolver-lhes-á o dinheiro que lhes deve com títulos fiscais: não te posso pagar o que te devo, mas se investes no meu país, todos os teus benefícios estarão exentos de impostos. O impressionante é que estas medidas de sentido comum ficam circunscritas à discussão de pequenos círculos académicos. A vulgata é "vivemos acima de nossas possibilidades", "há que se apertar o cinto"... Autênticas asneiras. Eu reprovo os estudantes que dizem estas coisas e, no entanto, é o que os grandes "experientes" contam em todos os jornais.

Alternativas

Domènech: Há fenómenos pouco visíveis mas importantes que permitem imaginar transformações profundas perfeitamente factíveis. Por exemplo, um parte significativa da economia mundial funciona cooperativamente. Há 800 milhões de trabalhadores que trabalham directamente ou indirectamente em cooperativa, mais de 10% da população mundial. O trabalho assalariado é a minoria maioritária no mundo, mas há 1.600 milhões de trabalhadores não assalariados -entre cooperativistas, pessoas que trabalham em bens comunales ou em propriedades fundadas no trabalho pessoal e escravos-, e 1.000 milhões de pessoas que simplesmente estão fora da economia mundial. O capitalismo não é, como crêem os estruturalistas, uma grande unidade funcional, senão uma realidade histórica muito complexa.

Em Espanha temos um exemplo paradigmático, como é a cooperativa Mondragón, a maior do mundo, com mais de 90.000 empregados. Os proprietários desta empresa são os trabalhadores. Há empregados que não são proprietários, mas todos têm a possibilidade de chegar ao ser, para isso têm um banco próprio que concede os créditos necessários para se converter em copropietario. Deste modo, recebem dividendos, têm voto nas assembleias, que funcionam democraticamente... O leque salarial é de 5 ou 6 a 1, mas são ratios que se podem revisar nas assembleias. É uma realidade social económica que abundaria bem mais em Europa se não estivesse durísimamente castigada pelas políticas económicas dos governos. No programa de um governo de esquerdas poderia figurar o fomento das cooperativas de trabalhadores. Não tudo tem por que ser ajudas às multinacionais...

Raventós: Outra alternativa factível é a renda básica. A renda básica é possível dentro do marco capitalista, como o foi no seu momento a assistência sanitária universal. Os que acham que a renda básica é uma medida que, de seu, pode acabar com o capitalismo ou bem não entendem como funciona o capitalismo ou, em todo caso, dão uma importância à renda básica que não tem. Mas isso sim, com uma renda básica o capitalismo seria muito diferente do que conhecemos. Não só porque cobriria as necessidades básicas e asseguraria o traspasso do umbral da pobreza. Tão importante como a possível melhora nas condições materiais é o aumento do poder de negociação dos trabalhadores que suporia. A renda básica, ao menos em minha forma de entendê-la, é uma opção social e económica que supõe a intervenção do mercado. O mercado, contra o que se acostuma a supor muito precipitadamente, sempre tem estado intervindo. A diferença entre partidários dos ricos e dos pobres, para dizê-lo de forma simplificada, não é que os primeiros defendam o mercado livre e os segundos queiram o intervir. A diferença exacta é a seguinte: os primeiros querem intervir o mercado para favorecer seus interesses e os segundos querem intervir o mercado para favorecer os seus. Assim que a renda básica, como dizia, é uma opção de política económica em defesa da maior parte da população. Não da parte mais rica. Exactamente o contrário do que se veio fazendo ao longo dos últimos trinta e cinco anos, se atendemos a ingredientes centrais como a distribuição da renda que se produziu neste tempo. Um mero exemplo, se em 1976 o mais 1% rico de EE UU acaparaba o 9% da renda nacional, em 2006 já acumulava o 20%. 2006 é justamente no ano anterior à crise. Actualmente a desigualdade e a polarización são maiores. A crise económica, provocada e agora perfeitamente aproveitada pelos especuladores e banqueiros, está a fazer estragos entre as classes populares.

Domenech: Sou bastante céptico com respeito às políticas "alterglobalizadoras" que hoje ocupam a boa parte da esquerda. Acho que, pelo cedo, há que desandar boa parte do andado, endereçar a economia e recuperar a soberania popular controlando os movimentos de capitais. Há que fazer uma ampla coalizão que destrua a elite rentista que se apoderou da dinâmica económica do mundo e que nos levou à catástrofe. Porque, é importante que o tenhamos presente, o que vemos é a ponta de um iceberg que se consolidou ao longo dos últimos trinta anos e que inclui também um enorme aumento da pobreza em todo mundo ou a destruição em massa dos ecosistemas. A situação actual já a conhecemos, este é o capitalismo desbridado da Belle Époque. Temos conhecimentos muito elaborados para saber como se podem fazer reformas, o que falta é vontade política para as empreender e, sobretudo, um grande movimento social como o que sim existia nos anos trinta.

Um comentário:

Anônimo disse...

Moi boa esta entrevista.