30/08/2010

Karl Marx

Manuel Sacristán. Publicado originariamente em Albert Domingo: Lecturas de filosofía moderna y contemporánea, Trotta, Madrid, 2007, pp. 181-186. Reproduzido em Rebelion e traduzido por galizalivre.org.


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Político, filósofo e economista alemao (Tréveris 1818-Londres 1883). Filho dum advogado hebreu de formaçom e tendências moderadamente ilustradas e liberais, a sua infáncia decorreu na Renánia.
Estudou na sua cidade natal e aos dezassete anos começou a carreira de direito na universidade de Bonn. Mas desde a sua transferência à universidade de Berlim (1836), Marx orientou-se cada vez mais claramente para a filosofia e para a história. Desta época data o seu compromisso sentimental com Jenny von Westphalen, filha dum funcionário da nobreza recente.
À sua chegada Berlim o moço Marx viviu intelectualmente no mundo das ideias do Iluminismo. A filosofia hegeliana, recém morto Hegel, dominava o ambiente espiritual berlinês e estava a dar origem a umha tendência progressista e democrática dentro da que se havia situar aginha o mesmo Marx. Mas a mudança de orientaçom intelectual deste nom se produziu sem crise. Numha carta dirigida ao seu pai o 10 de Novembro de 1837 chega a pôr entre as causas da doença e a depressom que sofreu daquela a necessidade intelectual em que se viu de adoptar os motivos básicos do pensamento hegeliano: "Pugem-me doente, como já te escrevera (...) da irritaçom que me consumia por ter que converter em ídolo meu umha concepçom que odiava". Apesar destas tensons intelectuais, Marx já era em 1837 um "jovem hegeliano" de esquerdas típico abondo. Disso dá testemunho a citada carta, em que proliferam reflexons directamente inspiradas polo pensamento de Hegel, e mesmo temas de detalhe mui característicos da filosofia deste, como a crítica despectiva do "pensamento matemático" ou formal em geral.
A orientaçom dominante dos hegelianos de esquerda consistia em perceber e aplicar a filosofia hegeliana como um instrumento crítico da sociedade existente. Mas, dacordo com as suas concepçons básicas idealistas, sociedade era para eles tanto como cultura explícita ou mesmo teórica, ou o mesmo que grau de realizaçom das ideias nas instituiçons: a crítica é também teoria, como afirmara Marx ainda na sua tese de doutoramento (um estudo sobre a filosofia de Demócrito e Epicuro) em 1841. Apesar disso, o exercício da crítica pujo progressiva e naturalmente o jovem Marx em presença de realidades sociais, sobretodo a partir do momento em que começou a redigir trabalhos jornalísticos para a Rheinische Zeitung ("Gaceta renana"), da que chegou a ser director (1842). Os debates da Dieta renana sobre matérias como os roubos de lenha no monte, por exemplo, fixérom acordar em Marx umha sensível consciência dos problemas sociais. Aginha se decatou na natureza classista da legislaçom e dos debates mesmos da Dieta. Os seus artigos na "Gaceta" pintam de maneira plástica nom apenas as atitudes de classe dos oradores dos estamentos nobre e burguês, senom também a natureza de classe do Estado, cuja legislaçom e cuja acçom administrativa tendem a virar o poder social em guarda jurado dos interesses dos proprietários. A crítica do jovem Marx (que tinha daquela vintequatro anos) a esta situaçom procede segundo umha linha liberal apoiada filosoficamente numha interpretaçom esquerdista do pensamento de Hegel: essa situaçom é reprovável porque um Estado classista nom cumpre a ideia do Estado como realizaçom da eticidade, da especificidade humana.
Pode documentar-se que Marx tivo durante aqueles anos um primeiro conhecimento do movimento obreiro francês e inglês e do socialismo e o comunismo utópicos de de Fourier, Owen, Saint-Simon y Weitling. No que diz respeito os movimentos revolucionários franceses da altura a sua fonte foi provavelmente a Augsburger Allgemeine Zeitung ("Gaceta Geral Aubsburguesa"), na que H. Heine publicava crónicas de Paris em que várias vezes aludiu ao comunismo francês e o dos emigrados alemaos. A reacçom de Marx a esses dados tem dous aspectos a diferenciar: por umha banda, considera justificado que a "classe que até o de agora nom possuiu nada" aspire a possuir, e culpabiliza a classe dominante alemá pola sua atitude puramente negativa; a aspiraçom económica do proletariado e a sua luita por objectivos materiais imediatos (Marx comenta a grande agitaçom de Lyon, por exemplo) semelham-lhe naturais e justificados fenómenos sem importáncia e nada temíveis. Mas nas ideias comunistas vê ideias parciais -ideias de classe- , tam incapazes como as da classe dominante de realizar o estado ético. As ideias comunistas som um "temor da consciência que provoca umha rebeliom dos desejos subjectivos dos homens contra as compreensons objectivos do seu próprio entendimento". Essas "compreensons objectivas" som o conceito hegeliano do Estado, face o que o comunismo é para o Marx de entom a parcial noçom dum "Estado de artesaos". Em 1843 a censura agiu contra a Gaceta Renana e Marx tivo que dimitir. Já previamente a este endurecimento da censura, o da política universitária prussiana, forçara-o a dessistir do seu projecto de carreira universitária. Este ano de 1843, no que Marx se somaria à emigraçom política alemá em Paris, foi abundante em acontecimentos decisivos para a sua vida: além de se casar, conheceu Heine, Börne, Proudhon e Engels. Com esses acontecimentos, nasceu o Karl Marx que passou como figura de grande incidência à história das ideias e dos feitos.
A amizade com Engels acarretou ante todo para Marx a conviçom de que cumpria estudar com fondura os problemas económicos. A consciência disso coincidiu com esta fase da sua evoluçom intelectual e moral com a utilizaçom do pensamento de Feuerbach (um humanismo abstracto que culmina numha crítica recusatória da religiom e da filosofia especulativa) como correctivo do idealismo de Hegel. Essa situaçom reflecte-se antes do mais em três trabalhos mui importantes para compreendermos a sua evoluçom intelectual: dous escritos (1843) para os Deutsch-französische Jahrbücher ("Anales franco-alemaos"), a "Crítica da filosofía hegeliana do direito" e "Sobre a questom judea"; e outro nom publicado durante a sua vida que se conserva em estado de rascunho: "Manuscritos económico-filosóficos" de 1844. Todos estes escritos -nomeadamente o último- apresentam caracteristicamente o que depois Marx consideraria umha "mestura" do ponto de vista ideológico, ou de história e crítica das ideias, com o factual, ou de análise e interpretaçom dos dados. Este traço indica suficientemente o lugar de transiçom que ocupam estes escritos na biografia intelectual de Marx. O aspecto mais meramente filosófico desta transiçom apreça-se, designadamente nos manuscritos, na sua tentativa de precisar a síntese do pensamento recebido a partir do que se está a artelhar o seu próprio.
Em 1845 Marx tivo que abandonar Paris. Marchou a Bruxelas e em 1847 a Londres. Desta jeira som as obras em que se adoita ver a primeira formulaçom do materialismo histórico: "A sagrada família", "A ideologia alemá", "Miséria da filosofia" e o "Manifesto do Partido comunista" (escrito em 1847, publicado em 1848). Engels datou nesses anos a viragem, caracterizando-a como um sobardamento das ideias de Feuerbach: "mas cumpria dar o passo que nom deu Feuerbach; o culto do homem abstracto, que constituía o cerne da nova religiom, tinha que substituir-se pola ciência do homem real e da sua evoluçom histórica. Este ulterior desenvolvimento do ponto de vista feuerbachiano além de Feuerbach começou em 1845, por obra de Marx, em A sagrada família. Nessa obra e em A ideologia alemá, Marx (com a colaboraçom de Engels) vai explorando, com ocasiom de motivaçons polémicas, a sua nova concepçom das relaçons entre o que a partir de entom se chamaria no marxismo a sobreestrutura (as instituiçons e as formaçons ideológicas) e o que receberia o nome de base da vida humana, progressivamente entendida como o sistema de relaçons de produçom e apropriaçom do produto social (relaçons ou condiçons, já que a palavra alemá Verhältnisse, sempre utilizada no plural neste contexto, significa ambas as cousas, e também circunstáncias). No Manifesto (portanto em 1847 como muito tarde) está já presente, aliás da clássica tese marxista que aparece na primeira frase do célebre texto ("A história de toda sociedade até hoje é a história de luitas de classe") também o esquema dinámico da evoluçom histórica tal como o entende o marxismo, quer dizer: a tensom dialéctica entre as condiçons ou relaçons de produçom e o desenvolvimento das forças produtivas. No Manifesto afirma Marx, por exemplo, que as "modernas forças produtivas" estám em tensom "desde há décadas" com "as modernas relaçons de produçom, com as relaçons de propriedade que som as condiçons de vida da burguesia e a sua dominaçom".
Em 1847 Marx era membro da Liga dos comunistas e trabalhava atreu na organizaçom do movimento obreiro. A evoluçom de 1848 moveu-no a passar à Alemanha (no mês de Abril), o mesmo que Engels, com o intuito de colaborarem na revoluçom democrática de aquele país. Marx publicou em Colónia a Neue Rheinische Zeitung (Nova Gaceta Renana), de vida efémera (1848-1849). Trás o fracasso da revoluçom, achava-se em Londres (expulso de Paris) em 1849. E em 1850 disolveu-se a Liga dos comunistas. Já nom se moveria Marx de Londres mais que mui transitória e excepcionalmente, ou por motivos de saúde na última etapa da sua vida. A jeira que começa no ano 50 é de muito sofrimento causado pola pobreza, o esforço e a resultante má saúde. Nesta época começara a preparaçom dos materiais e análises para Das Kapital, que havia de sofrer numerosas mudanças respeito os projectos iniciais de Marx. Os textos conhecidos com os títulos de "Contribuiçom para a crítica da economia política", "Rascunhos dumha crítica da economia política" e "Teorias sobre o mais valor" som todos dessa jeira e preparatórios de O Capital (isto pode dizer-se objectivamente, nom no sentido de que tais foram os planos literários de Marx). Três anos antes de aparecer O Capital (Vol. I) fundou-se a Associaçom Internacional de Trabalhadores, a Internacional por antonomásia. Aos poucos da sua fundaçom, chamou-se Marx a participar dela, e converteu-se no seu autêntico guieiro, ao redigir a memória inaugural e os estatutos. A distinta concepçom do vieiro a seguir na luita revolucionária levou-no a se enfrentar com Bakunine e os seus partidários, que no 1872 fôrom expulsos da Intrnacional.
O primeiro volume de O Capital, único publicado em vida de Marx, foi durante o século seguinte à sua publicaçom a obra mais influinte e famosa do seu autor: apenas mais recentemente começou a exigir umha atençom análoga a sua obra anterior e juvenil. Contemplado desta óptica, O Capital aparece-se como o remate dum movimento intelectual de afastamento progressivo e negaçom da especulaçom filosófica e da sua pretensom de ser fundamento da acçom política revolucionária: no mesmo movimento esse papel atribui-se a um conhecimento positivo da realidade histórica, social e económica. "Assi que reconheceu que a estrutura económica é o alicerce sobre a que se ergue a sobreestrutura política, Marx atendeu antes do mais ao estudo desta estrutura económica" (Lenine).
Conceito basilar e novo, quanto menos no seu aproveitamento sistemático, das obras da época de O Capital e deste mesmo é o de mais valor. Com esse conceito propom Marx umha explicaçom da obtençom de valor por parte do proprietário do dinheiro como resultado da sua circulaçom. O ganho de valor explica-se porque o capitalista pode comprar e compra de facto a única mercadoria que produz valor com o seu consumo, a força de trabalho. Nas obras que, como nomeadamente O Capital, som características da madurez de Marx, apreça-se umha recuperaçom de conceitos hegelianos. O mesmo Marx comentou o feito, explicando-o a um tempo em dous sensos: como mero coqueteio intelectual com essa linguagem intelectual, como reacçom contra a vulgaridade antihegeliana da cultura esquerdista alemá dos anos 50 e 60; e como reconhecimento de que a "mixtificaçom (idealista) nas maos de Hegel nom anula de nengum jeito o feito de ser o primeiro em expor de modo amplo e consciente as formas gerais de movimento de aquela. A dialéctica topa-se invertida no pensamento de Hegel. Cumpre endireitá-la para descobrir o seu cerne racional dentro da casca mística. (Limiar à 2ª ediçom do Vol. I de "O Capital").
As vicissitudes e as viragens da evoluçom do pensamento de Marx, tam rica e revolta como a de qualquer outro pensador importante, suscitam dous problemas que som a dia de hoje o tema da maior parte da literatura marxiana. o dos "curtes", "rupturas" ou "censuras" que pudesse haver nessa evoluçom, nomeadamente entre os anos 1842-1847, e o da natureza do trabalho teórico de Marx, tam directamente ligado (a diferença do trabalho intelectual típico moderno, por exemplo, o dum físico) com alvos práticos (políticos revolucionários). Face o primeiro problema, cumpre dizer alomenos que um exame da evoluçom intelectual de Marx, por curioso que for, permite identificar nom um, senom vários pontos de inflexom (algum mesmo posterior a "O Capital"); nengum deles, porém, se revela como ruptura total: em 1851, por exemplo, escolmava para encabeçar umha publicaçom dos seus escritos um artigo do ano 1842, as "Observaçons sob a recente instruçom prussiana sobre a censura". Quanto ao segundo problema, semelha também claro que Marx praticou com os temas económicos um tipo de trabalho intelectual nom idêntico com o que é característico da ciência positiva, ainda que si composto, entre outros, por este. É mesmo claro que Marx atribui um peculiar estatuto intelectual a toda ocupaçom científica geral com os problemas económicos. Assi escreve, por exemplo, no citado limiar à IIª ediçom do Vol. I de "O Capital": "na medida em que é burguesa -quer dizer, enquanto conceba a orde capitalista como forma absoluta e única da produçom social, em troca de como estádio evolutivo transitório-, a economia política nom se pode manter como ciência, senom mentras a luita de classes for latejante e se manifestar apenas em fenómenos isolados". Marx nom fijo nunca afirmaçom semelhante sobre nengumha outra ciência.
Em 1870 Engels pudo tranladar-se a Londres e entrou a fazer parte do conselho geral da Internacional, aliviando Marx de parte do seu trabalho e fazendo possível que este se retirar em 1873 da actividade pública para se dedicar, dentro dos esforços que permitia a sua eivada saúde, a continuar a redacçom de O Capital. A morte da sua mulher e da sua filha afectárom-no fundamente e precipitárom o seu próprio fim.

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